A guerra de palavras e a escravidão no Brasil moderno

dezembro 19, 2017
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Centro de beneficiamento de carvão, Mato Grosso do Sul,  Brasil - Crédito: João Roberto Ripper​Centro de beneficiamento de carvão, Mato Grosso do Sul, Brasil – Crédito: João Roberto Ripper​

ANN ARBOR—O que constitui trabalho escravo no Brasil? O que significa dizer que um trabalhador foi escravizado?

Esse é um tema de grande debate atual entre governantes brasileiros e defensores dos direitos humanos, e essa guerra de palavras pode ter um impacto devastador sobre os trabalhadores da nação, de acordo com um novo estudo da Universidade de Michigan. A pesquisa pode ajudar a esclarecer como o termo “escravidão” é aplicado e o que está em jogo para os trabalhadores no Brasil se essa definição legal mudar.

“As autoridades brasileiras desenvolveram ferramentas poderosas e eficazes para identificar a imposição moderna de ‘uma condição análoga à de um escravo,'” disse Rebecca Scott, professora de História e Direito da U-M e uma das autoras do estudo. “E muitos trabalhadores tiveram a vida melhorada como resultado do trabalho desses inspetores, promotores e juízes.”

Desmatamento, Santana do Araguaia, Pará, Brasil - Crédito: João Roberto Ripper​Desmatamento, Santana do Araguaia, Pará, Brasil – Crédito: João Roberto Ripper​

Mas tudo isso pode mudar.

Em outubro, um novo decreto do governo – agora temporariamente suspenso – reduziu a definição da escravidão no Brasil para se concentrar especificamente em “restrições à liberdade de movimento” dos trabalhadores. A linguagem revisada, disse Scott, poderia interromper o progresso que os defensores dos direitos humanos e o sistema jurídico fizeram para proteger os trabalhadores e eliminar as práticas de trabalho opressivas.

“Isso também reverteria uma política pública que foi construída em observações cuidadosas de casos que aconteceram por mais de duas décadas, com vários presidentes no poder,” disse ela.

Agropecuária, Pará, Brasil - Crédito: João Roberto Ripper​Agropecuária, Pará, Brasil – Crédito: João Roberto Ripper​

Definição dos termos

Scott escreveu o artigo “How does the law put a historical analogy to work?” com dois co-autores brasileiros – Leonardo Barbosa, advogado da Câmara dos Deputados, e Carlos Haddad, professor de Direito da Universidade de Minas Gerais. Eles analisaram relatórios de inspeção detalhados gerados ao longo das duas últimas décadas, durante as quais as autoridades brasileiras identificaram e processaram as ocorrências do que eles consideravam trabalho escravo, resgatando mais de 50 mil trabalhadores de condições opressivas.

Mas com uma nova linguagem legal pendente, os futuros trabalhadores podem não gozar das mesmas proteções. O texto exato da legislação nacional é importante, co-autor Barbosa diz, porque “não existe uma definição universal de escravidão”.

O Código Penal brasileiro existente usa dois conceitos cruciais para identificar o trabalho escravo, argumentam os autores: condições degradantes e dias de trabalho debilitantes. Oficial desde 2003, esta definição cresceu a partir das observações do dia-a-dia das condições de trabalho pelos inspectores do trabalho. Está baseada na proteção da “dignidade humana” e é considerada uma campanha modelo contra o trabalho escravo para outras nações.

Isso parece não importar ao governo, que segundo os especialistas, está respondendo à pressão de lobistas do agronegócio da nação para facilitar a definição. O lobistas, que compõe cerca de 40% do Congresso brasileiro, apoiam o presidente Michel Temer, que em 2016, escapou de enfrentar o julgamento por acusações de obstrução da justiça depois de uma votação apertada na Câmara dos Deputados.

Um dos co-autores de Scott, Haddad, descreve o atual debate sobre a linguagem legal como um retrocesso para os direitos trabalhistas no país. “Restrições à liberdade de movimento é uma definição muito estreita para identificar a variedade de abusos enfrentados por trabalhadores brasileiros que trabalham em condições de escravidão,” explicou.

“Se o novo decreto for validado novamente, as vítimas do trabalho escravo no Brasil têm menos probabilidades de serem resgatadas”, disse Haddad.

Cana-de Açucar, Minas Gerais, Brasil - Crédito: João Roberto Ripper​Cana-de Açucar, Minas Gerais, Brasil – Crédito: João Roberto Ripper​

As palavras são importantes

Em sua pesquisa, os autores identificaram casos do início da década de 1990 até 2016 em que os trabalhadores foram resgatados dos locais de trabalho rurais e urbanos, porque os inspetores determinaram que eles foram reduzidos a “uma condição análoga à escravidão”. Como resultado dessas intervenções, contratos foram cancelados e as vítimas receberam salários atrasados ​​e seguro desemprego.

Em um incidente de 2008, os inspetores descobriram dois grupos de trabalhadores migrantes alojados em alojamentos sujos e “deploráveis” com inclusive, menos camas do que ocupantes. Os trabalhadores não tinham sido registrados como empregados da fazenda e não recebiam regularmente. Os inspetores então citaram um risco imediato para a saúde e segurança do grupo, fechando os alojamentos e liberando os 16 trabalhadores da fazenda. O agricultor foi obrigado a compensar os trabalhadores, e eles receberam benefícios de desemprego e ajuda para recolocação no mercado.

Segundo Haddad, esta resolução seria diferente se o novo decreto estivesse em vigor e o trabalho escravo for definido apenas como “constrangimento”.

“Se um trabalhador tem que prover à família, evitar a fome e não tem outros recursos, não é simples deixar o trabalho para trás”, disse ele. “Mesmo que as condições dos trabalhadores agrícolas da fazenda que mencionados eram terríveis, apenas um queria sair. Isso não é liberdade”.

O artigo está publicado no Volume 13 do Duke Journal of Constitution Law & Public Policy.

Rebecca Scott

Informações sobre outras parcerias entre o Brasil e a Universidade de Michigan